À La Folie

Téo Santana
18 min readSep 26, 2024

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O que é viver na ausência de algo que nunca deixou de existir?

O quarto parecia duas vezes mais claro devido ao impacto da luz fluorescente irradiada entre as paredes brancas e sobre os móveis de mesma cor. Elias, em frente ao grande espelho de corpo inteiro, também de moldura branca e texturizada com vários arabescos, deslizava os dedos por sobre os tecidos refinados que vestia, mas ainda não estava satisfeito. Mesmo com seus ares de artista maluco, uma exposição como a que frequentaria naquela noite exigia certa perfeição, e ele não ousaria aparecer numa galeria tão importante sem estar à altura das expectativas. Não só por ele, uma vez que Tarja Kantola, sua patrona no mundo artístico de Helsinki, estaria, como de costume, em um de seus melhores trajes, e ele odiaria decepcioná-la.

Ele sentiu a presença dela antes mesmo de vê-la. A temperatura ao seu redor sempre caía sutilmente, como se uma janela fosse aberta no meio de uma noite outonal. A brisa gélida que cortava o ar tomava o ambiente, tocando sua pele morta como um fragmento de memória do que foi viver. Não era o tipo de frio que o corpo humano vivo reconheceria como desconfortável. Era um frio que tocava a alma, que parecia provocar as camadas mais profundas do seu ser amaldiçoado, porque era um frio feito sob medida para ele e apenas ele. Um frio do tamanho de sua saudade.

O ar ficava, então, mais denso, carregando consigo um aroma inebriante e familiar. Era um cheiro que Elias conhecia bem, um aroma que, antes, o anestesiava em momentos de carinho e paixão, que perdurava em suas roupas ao longo da noite e pelo qual ele ansiava aspirar diretamente da pele e dos cabelos dela quando, ao retornar para casa, envolvesse-a num abraço cheio de saudades. Era o perfume de Odette.

Não era o perfume clichê de uma rosa ou de algum lírio delicado; era algo único, algo que ele nunca conseguiu nomear. Alguma coisa entre o jasmim-do-imperador e a dama da noite, misturados a chá de cidreira, lençóis limpos e petricor — uma combinação que apenas ela poderia carregar com tanta elegância. Agora, no entanto, o perfume carregava algo mais. Uma presença fúnebre, um lembrete constante de que a figura que em breve se materializaria pairava entre o que é e o que já foi. E, ainda assim, ele o inalava como se cada respiração fosse sua última, como se tivesse sido resgatado de um afogamento e seus pulmões há tanto paralisados necessitassem desesperadamente de cada lufada de ar.

Très élégant — Disse a voz melodiosa, suave como seda movida pelo vento, num murmúrio que só ele poderia ouvir.

Quando ela chegava, seus sentidos pareciam se expandir e, ao mesmo tempo, comprimir-se, estando restritos apenas ao que vinha dela. Como se o mundo exterior perdesse toda a importância diante da presença dela — e, geralmente, era isso mesmo.

Elias piscou lentamente, encontrando o olhar de Odette refletido no espelho, a alguma distância de si. Sua forma era imprecisa e, ainda assim, perfeitamente nítida em seu olhar. O vestido branco esvoaçava, o tecido, fino como véu de névoa, dançava em movimentos lentos, ondulando às ordens de um vento que Elias não sentia realmente. A deferência no modo como o tecido envolvia seu corpo e, ao mesmo tempo, parecia não tocar nada de sólido, era bela e perturbadora na mesma proporção. Sua pele clara brilhava, uma luminosidade opaca que não absorvia nem refletia completamente a luz artificial do cômodo (que parecia incapaz de decidir se deveria iluminá-la ou se ela própria emanava uma luz discreta), mas parecia filtrá-la, moldá-la. Os cabelos negros, soltos e dançando muito sutilmente, emolduravam o rosto redondo que Elias tanto amava. Cabelos feitos de um céu noturno sem estrelas, feitos da escuridão do reino dos mortos.

E então havia seus olhos. O olhar de chocolate Cémoi que Elias conhecia tão bem. Aquele que antes era tão vibrante, e agora reluzia de forma tênue e espectral — mas ainda lindo, como tudo nela. Eles brilhavam, sim, todavia, de um jeito diferente: um brilho que não vinha de vida ou de emoção, mas de algo mais distante, mais sombrio, como se aqueles olhos estivessem repletos de lembranças guardadas de um tempo e de um lugar que ele jamais poderia alcançar, pois, mesmo na morte que compartilhavam, ele nunca poderia dividir com ela o mesmo espaço no além-mundo.

Em vida, os olhos de Odette eram como terra fértil, e tudo florescia naquele solo. Tantas cores, tantas histórias, tantas promessas silenciosas. Agora, quando Elias olhava de perto, parecia que o castanho dos olhos de Odette se desfazia nas bordas, como tinta sendo aos poucos diluída em água. Sentia que eles agora continham todas as coisas que ela nunca teve a chance ou quiçá a vontade de lhe dizer enquanto viva; todos os sentimentos que ficaram presos entre o último suspiro e a morte. Eles falavam de uma dor silenciosa, de uma saudade constante, mas também de um amor que havia sobrevivido à destruição do corpo. E doía saber que, por mais que tentasse, nunca conseguiria capturar plenamente a essência daquele olhar em seus desenhos e pinturas. Era algo que simplesmente existia além de qualquer explicação, uma verdade que só ele conhecia, mas que jamais poderia descrever ou reproduzir.

— Não sei se está perfeito ainda — Murmurou ele, franzindo ligeiramente a testa enquanto ajustava a lapela do casaco. — O que você acha, ma fleur?

Odette se aproximou mais com a leveza de um sussurro. Seus pés, embora visíveis e aparentemente sólidos, davam a impressão de mal tocarem o chão. A cada passo, ela flutuava sutilmente, sua figura deslizando pelo ambiente com uma sutileza impossível, quase como se fosse uma lembrança em tamanho real. Não havia som. Nenhum ruído dos sapatos de saltos baixos contra o piso de mármore claro, nenhuma reverberação nos espaços ao redor. Era um movimento silencioso, tão delicado que era como se o ar hesitasse em oferecer resistência ao seu corpo intangível.

Elias observava com fascinação, como sempre. Ela não andava, ela pairava, deslocando-se com aquela fluidez sobrenatural incapaz de ser interrompida por quaisquer obstáculos físicos. O vestido ainda se movia naquele fluxo constante, seguindo os movimentos do seu corpo e acariciando o ar com afabilidade; seus tecidos ondulando devagar, prolongando cada pequeno gesto, como se estivessem imersos em água.

Era graciosa, mas não de um jeito humano. Cada movimento carregava uma harmonia entre o que era natural e o que havia transcendido a vida. Seus gestos eram precisos, sensíveis, e ao mesmo tempo, havia uma leve rigidez em sua flutuação, como se estivesse perfeitamente consciente de seu estado — como se ela mesma soubesse que não pertencia mais a este mundo.

— Sempre tão exigente — Odette riu suavemente, aquele som que fazia o peito de Elias aquecer mesmo na fria imortalidade vampírica. — Mas é uma noite importante, n’est-ce pas? Deixe-me ver.

Seus dedos fantasmagóricos se moveram por sobre os ombros dele, suavizando os vincos e ajeitando a gola. Mesmo sobre o tecido do smoking escuro, Elias sentiu o toque gélido, mas não havia desconforto. Era um frio familiar, que trazia consigo uma sensação de cuidado. De amor. Em meio àquelas interações, sentia a dualidade de seus movimentos — tão vivos em sua graça, tão mortos em sua ausência de peso, som e calor.

Quando ela movia a cabeça, seus cabelos negros acompanhavam o movimento com uma suavidade quase hipnótica, caindo e subindo em câmera lenta, como se o tempo ao redor dela fosse diferente, mais branco, mais elástico. Seus olhos se moviam com a mesma graça, atentos, mas com uma quietude que lembrava a imobilidade da morte. Quando Odette olhava para algo ou para alguém, havia uma intensidade calma, como se cada detalhe fosse eternamente registrado em sua mente, congelado para sempre naquele tempo que era só dela.

“Fort comme la mort est l’amour”. A voz na cabeça de Elias repetia essas palavras baixinho, como uma prece. A frase, tirada da Bíblia, usada pelo padre que os casou anos antes naquela noite de inverno, ressoava forte com a verdade nua e crua de sua nova existência. Ele sempre soube que o amor era poderoso, capaz de destruir e de curar, mas a cada vez que tinha Odette ao seu lado em sua forma incorpórea, recebia e compreendia uma nova camada de sua força. A morte os separou, mas, paradoxalmente, também os manteve juntos. Porque Elias sabia, no fundo de sua alma e sem qualquer sombra de dúvidas, que Odette havia partido. Seu corpo não mais existia, suas mãos, outrora tão quentes e delicadas, agora se reduziam a uma mera memória fantasmagórica. E, no entanto, ela estava ali. Sempre. Flutuando entre os véus do que é vivo e o que está morto, entre o que era real e o que era uma projeção de sua própria nostalgia. Fort comme la mort est l’amour. O amor não apenas sobrevivia à morte, mas também a igualava em intensidade. Tão implacável, tão inevitável quanto. Ele podia senti-lo, pesado como uma âncora e, ao mesmo tempo, leve como uma pluma.

Ela deu um passo para o lado, como se o estivesse analisando de um novo ângulo. Os olhos cor de barro dançavam muito lentamente de um ponto a outro, inspecionando o trabalho dele. Sua expressão impassível não fazia aumentar a impaciência de Elias, muito pelo contrário. Em seu íntimo, muitas vezes em que ocorria aquele tipo de situação, ele torcia para que tivesse errado em algo apenas para que ela pudesse consertar para ele. Nem sempre o erro era proposital, é claro. No auge de sua desatenção, e também de sua falta de zelo para consigo desde mais tempo do que se lembrava, sempre sobrava para Odette ajustar seus fios grisalhos desalinhados, tirar algum pelo de gato de seus ternos escuros ou implorar para que ele mantivesse aquela mancha de tinta vermelha em sua calça ou em sua barba para ir à exposição, pois ela era linda e ele, enquanto artista, não precisava ter medo da sujeira que a arte lhe atribuía.

Ele sabia que, aos olhos dela, ele era lindo até com manchas de carvão em seus dedos e coberto de tinta dos pés à cabeça. Ao lado dela, ele sabia que não precisava temer a feiúra do mundo, pois qualquer lugar onde estava Odette Bouchard Beaumont automaticamente ganhava cor, brilho, vida. Ele também não precisava temer a feiúra que via em si mesmo e parecia aumentar quando estava ao lado daquela deusa descida dos céus (que agraciava a desarmoniosa vida dos mortais com sua beleza sem nada pedir em troca). Quando ela segurava sua mão buscando confortá-lo, naquele aperto gentil que, silenciosamente, dizia-lhe “está tudo bem, eu estou aqui”; ou quando sorria para ele, aquele sorriso sem dentes que fazia seu rosto inteiro se iluminar e afastar qualquer treva a seu redor, ele se lembrava de que ela não o tinha escolhido pela presença ou ausência de uma beleza que, no fim das contas, era totalmente subjetiva. O amor dos dois era universalmente lindo e, sobre isso, não havia discussão. Para ela, ele era lindo. E enquanto sua amada, sua esposa, sua musa lhe dissesse, com aquele sorriso nos lábios e nos olhos, que ele era lindo, lindo ele se veria e lindo ele agiria.

Ah, je vois. Ici — Disse ela, ajustando-lhe a gravata, movendo os dedos com a destreza provinda de um hábito já antigo, íntimo. — Agora sim. C’est parfait.

Elias sorriu levemente, sentindo o calor do momento se infiltrando na frieza da realidade. Era engraçada a mudança de temperaturas à qual ficava sujeito durante suas interações com sua esposa morta. Era quase como se ele mesmo nunca tivesse morrido.

— Você acha? — Perguntou ele. Seu tom era mais suave e escondia uma nota de brincadeira, como se já soubesse a resposta, mas precisasse ouvi-la dela.

Com a cabeça, ela assentiu.

Ravissant — Ela sussurrou, os lábios próximos à orelha do marido. Odette deslizou as mãos pelo casaco mais uma vez e, então, inclinou-se, deixando um beijo frio e afetuoso no rosto de Elias. Um toque vaporoso, ilusório, que ele sabia ser impossível, e ainda assim… Real.

Ele fechou os olhos por um breve momento, saboreando o arrepio que percorreu sua pele. Quando abriu novamente, seus olhos se fixaram no reflexo do próprio rosto no espelho. E ali estava: a marca sutil de um batom vermelho, um traço de algo que não poderia existir. Um lembrete de que, mesmo no silêncio gélido e incolor da morte, as cores de Odette persistiam.

“Je t’aime à la folie”, ele se lembrava de um dia ter dito a ela. Talvez ele estivesse, enfim, entendendo o peso dessa expressão. Amar um fantasma era aceitar que cada toque era feito de vento, que cada sorriso era feito de sombras e que cada palavra de amor era um eco sem origem. Era aceitar de peito aberto sua loucura.

Elias sorriu mais largo. Uma expressão rara, mas verdadeira. No reflexo, Odette também sorria, seus olhos brilhando com o mesmo amor que haviam compartilhado em outra vida onde tudo era normal. Por um instante, ele não estava sozinho. Ela estava ali, ao seu lado, e tudo parecia certo.

Fort comme la mort est l’amour. A frase ecoava repetidamente em seu cérebro, quase como um consolo forçado diante do abismo que ele encarava, e que, sem pudor algum, encarava-o de volta e sorria para ele com presas manchadas de sangue. Havia, sim, algo de reconfortante na ideia de que o amor, essa força tão misteriosa e poderosa, pudesse ultrapassar os limites da existência, transcendendo o que era tangível. Mas, vivendo nesse estado de suspensão com Odette, ele se perguntava: será que isso era realmente uma vitória?

Ele não se lembrava de quando tinha sido a primeira vez em que a viu após seu falecimento. Quando a figura de Odette começara a emergir das sombras de sua mente e a tomar forma ao seu lado, acompanhando suas noites como uma guardiã celestial. Era como tentar lembrar do instante exato em que um sonho começa: impossível. Uma coleção de borrões, uma colagem de fragmentos que ele tentava desesperadamente reunir, mas que nunca formavam uma imagem completa. Para ele, linhas temporais já eram um conceito desfeito há algum tempo. Talvez fosse uma defesa inconsciente, uma maneira de sua mente evitar um sofrimento maior. Mas o resultado era uma amnésia angustiante, uma sensação constante de que algo estava faltando, algo crucial que ele simplesmente não conseguia alcançar. E ele não sabia mais se era porque já não queria se lembrar ou se era porque simplesmente não conseguia.

Ele não sabia se ela tinha gritado por ajuda ou se o chamou pelo nome enquanto as chamas a cercavam e lhe tiravam o ar. Não sabia como estava o rosto dela naquele último momento já que, segundo os bombeiros, ele não quereria ver o dano causado pelo fogo para que não se lembrasse dela daquela forma. Ele só sabia que tinha chegado tarde demais. Quando finalmente alcançou a casa vitoriana na qual viviam, o fogo já a havia devorado quase que inteiramente — e essa memória, antes tão clara e terrível e que, por noites a fio, habitou seus piores pesadelos, agora era apenas uma flama pequena e quase sem calor que dançava em sua mente como a chama de uma vela chegando a seu final. O que era para ser uma marca de tamanho exacerbado, uma cicatriz eterna de dor e luto, parecia ter se transformado em um borrão amarelo e laranja, em um eco distante que ele feliz ou infelizmente não conseguia mais ouvir.

Quando, em suas raras tentativas de rememorar, a sensação de sufocamento começava a apertar seu peito, Elias se perguntava de novo e de novo se não era melhor assim. Se era melhor não recordar, não saber. Porque, quando a névoa em sua mente começasse a se dissipar, ele sentiria o cheiro das chamas, ouviria as vozes abafadas dos bombeiros e dos vizinhos curiosos, sentiria o calor abrasador e veria o brilho do fogo refletido nos olhos alheios. Um brilho que consome, destrói. Um brilho que envolveu sua casa, sua mulher, e a matou. E então, quando a dor começa a se manifestar, tudo volta a ficar embaçado, e Odette está ali, serena e elegante, desviando sua atenção para o presente que eles compartilham. Há um conforto sombrio nesse esquecimento, uma proteção amarga que o impede de se despedaçar completamente. É um entorpecimento que o mantém funcional, que permite que ele continue existindo ao lado dela, mesmo que isso signifique viver em uma ilusão.

Ele tentava preencher esse vazio com as imagens da Odette que agora via, sorrindo fraco ao seu lado, ainda fazendo por ele as pequenas coisas que sempre fazia. Mas havia noites, como aquela, em que a realidade tentava se sobressair. Eventualmente, ele percebia que, mesmo essas lembranças recentes, mesmo essas interações quase diárias, estavam começando a se misturar com imagens, sons e momentos reais que ele tinha obrigação de recordar, ou que talvez nunca tivessem ocorrido. Quantas vezes ela riu daquele jeito? Quantas vezes o tocou com dedos frios como gelo? Quantas vezes ele sentiu o arrepio de sua presença antes de ela desaparecer? Eram noites em que ele se via ainda mais à beira do penhasco, querendo mergulhar de volta nos fatos, mesmo que eles fossem apenas sombras e ecos. Noites em que ele sentia a necessidade de questionar: por que ela ainda estava ali? Por que ele não conseguia libertá-la, ou libertar-se?

De vez em quando, ele também se questionava se esse esquecimento parcial de sua tragédia era obra de Odette. Ela sempre foi protetora, mesmo antes de sua morte. Será que agora ela estava, de alguma forma, guardando suas memórias mais dolorosas, escondendo-as em algum canto escuro de sua mente já quebrada, para que ele não sofresse tanto?

As travessuras dela eram sutis, delicadas, como ela mesma. Nunca eram sustos grotescos ou manifestações violentas de sua presença. Odette sempre preferiu os detalhes, logo, era esperado que escolhesse as pequenas perturbações que só um espírito amante poderia executar. Quando Elias estava distraído, mergulhado em suas criações artísticas, ela movimentava pequenas coisas: um pincel que rolava sozinho pela mesa ou uma paleta de cores que mudava de lugar, sumindo quando ele mais precisava e reaparecendo do outro lado do ateliê — o que também acontecia inversamente quando Elias, perdido em uma tempestade de ideias confusas e incapaz de se manter operante, perdia suas paletas, tintas, pincéis e gizes e ela, prestativa, colocava-os em algum lugar visível e de fácil acesso para que ele pudesse continuar seu trabalho.

Ela também tinha um carinho especial por seus livros. Quando Elias se aprofundava em leituras entediantes, ela virava a página suavemente, fazendo-o perder a linha de raciocínio. Ele suspirava, olhava em volta, mas jamais se irritava. Com um sorriso resignado, comentava para o nada: “Ah, ma chouette… Sempre querendo minha atenção, n’est-ce pas vrai?”. Em resposta, ela movia outra página, como se dissesse: “Sim, eu quero. Regarde-moi, Lili”. E ele fechava o livro, depositando-o na mesinha a seu lado e abrindo os braços para sentir os contornos de Odette a se sentarem sobre suas pernas e se aninharem em seu peito. Ele sentia seu peso, sentia suas formas, e a acolhia na curva de seu pescoço, como ela costumava fazer quando estava viva. “Lis-le-moi, Lili”, ela pedia em um sussurro, e ele, cego de amor e ternura, reavia o livro e tornava a ler de onde havia parado, agora em voz alta, enquanto sentia a respiração gélida e o sorriso da esposa contra seu pescoço.

Elias se perguntava, mais vezes do que gostaria, o quanto de tudo aquilo era real. Seria a maldição de seu sangue Malkaviano que lhe fazia ver Odette? Ou talvez fosse sua mente, recusando-se a deixá-la ir, segurando-se nas memórias de um amor que queimava mais do que o próprio fogo que a levou embora — o Fogo do Senhor contido naquele mesmo velho cântico? Mas, se fosse loucura, que mal havia? E talvez fosse melhor assim. Talvez, se ele se lembrasse, o peso de tudo o que eles haviam perdido seria demais. No final, a dor e o prazer de tê-la ali eram a única coisa que fazia a eternidade tolerável, porque era nas visitas de Odette que ele encontrava vida. Era nas suas críticas brincalhonas, nos seus toques frios, nos apelidos carinhosos sussurrados ao pé do ouvido que Elias se lembrava do que era ser querido por alguém, do que era ser amado de verdade. Mesmo que fosse uma fantasia. Mesmo que Odette não estivesse verdadeiramente ali. Ela ainda estava viva dentro dele, e isso era o suficiente.

— Merci, ma beauté. Como sempre, você sabe exatamente do que eu preciso — Disse ele, ainda olhando para ela no espelho.

Ela não respondeu com palavras, mas seu sorriso era tudo de que ele precisava. E enquanto ajustava os punhos da camisa, algo dentro dele hesitou. Aproximava-se sua hora de partir, e, consequentemente, a dela também.

Il est venu le temps, mon amour — Adiantou-se ela.

Elias assentiu, forçando um sorriso que não chegava aos olhos. E ela notou. Ela sempre notava.

— Elias… — Odette se inclinou, seu rosto novamente próximo ao dele, seu sorriso agora mais suave, mais triste. Ela tocou o rosto dele com a ponta do nariz, um gesto carregado de um afeto comum a seus dias felizes, que, apesar da frieza, não precisava de substância para existir e lhe trazer o mesmo calor que trazia quando, em vida, ela lhe ofertava o mesmo carinho. — Não faça essa cara. Você sabe que sempre volto.

A figura dela, tão vívida e presente momentos antes, começou a se dissipar, os contornos de seu corpo se desfazendo como uma pintura ainda fresca sendo atingida por um balde de solvente. Ele abriu a boca para falar, mas as palavras não vieram. Como ele poderia expressar o que sentia sem ser esmagado pela tristeza? Ao invés disso, fechou os olhos por um segundo, tentando controlar o aperto em seu peito. Quando os abriu de novo, ela estava ainda mais etérea, mais distante. O tempo deles estava acabando.

Talvez fosse a carência que o fazia acreditar que essa existência ao lado dela era sustentável. Talvez ele estivesse vivendo em um mundo paralelo, criado por sua própria loucura. Mas, se fosse isso, ele se agarraria a essa loucura. Porque, se deixasse Odette partir de vez, não sobraria nada. E a imortalidade sem ela seria insuportável.

Chaque jour je t’aime de plus en plus — Ecoa, pela última vez, a voz baixa e doce de Odette Bouchard Beaumont. E então, sua imagem desaparece.

Elias fica parado, permitindo-se mais alguns minutos de suspensão. Ele deixa que a quietude o envolva, que o pesar o domine enquanto tenta reter a imagem dela por mais alguns instantes, seus olhos cravados no espaço onde ela esteve como se pudesse capturar o momento com o poder da pura força de vontade. Há um silêncio opressor na sala, preenchido apenas pelo eco de suas últimas palavras. O nada que ela deixa para trás é quase palpável, uma ausência que pesa mais do que qualquer presença. Ele sente o fantasma do toque dela em seu rosto, ainda tão vivo em sua memória, mas sabe que não há nada ali além do vazio. Não há marca de batom, não há traço algum de sua existência. E, no entanto, ele a sente. Ele sempre a sente.

Será que ele realmente queria se lembrar?

Ele ainda sente o toque das mãos dela, ainda vê o sorriso fantasmagórico no reflexo do espelho, e cada peça que veste passa a ser como um escudo, uma armadura contra a fragilidade de suas emoções. O peso do tecido em seus ombros traz um senso de solidez, de presença física que contrasta com o impalpável, como se, com cada camada de roupa, ele se afastasse mais um pouco do mundo espectral de Odette e se aproximasse da fria e insossa normalidade de seu papel na sociedade.

Antes de sair do cômodo e apagar as luzes, ele se permite um último olhar para o espelho. A silhueta fantasmal dela já desapareceu completamente há algum tempo, mas ele sabe que, de alguma forma, ela ainda está ali, em cada sombra que se projeta no quarto, em cada curva de sua memória. E, por um breve momento, ele sorri, um sorriso pequeno e melancólico, como quem sabe que, apesar de tudo, a luz dela, mesmo que distante e frágil, ainda ilumina seu caminho. A luz de um farol que o impedia de ser levado pela força das ondas de uma realidade onde ele não tinha o amor de Odette Bouchard Beaumont.

Ele nunca poderia descansar ao seu lado como dois amantes que compartilham a mesma morte, o mesmo esquecimento. Para Elias, não havia paz, não havia fim. Apenas a amarga promessa de que, enquanto ele caminhasse sozinho pelas eras, Odette o seguiria, sempre distante e ao mesmo tempo sempre próxima, mas nunca realmente ao seu lado.

Ela estava morta de verdade, e ele, mesmo morto, permanecia vivo demais para conhecer o fim que ela conhecia.

O amor por sua Odette era um amor de fantasmas — não apenas o fantasma dela, mas o fantasma dele próprio, preso em um ciclo de espera e esperança, ambas vazias. O fantasma de um homem que havia deixado a vida há muito tempo e que agora se alimentava de uma paixão imortal, de um sentimento tão forte que desafiava a morte, que zombava do tempo. Elias sabia que amava um eco, um suspiro de algo que já tinha sido, e ainda assim não conseguia deixar de amá-la com a mesma intensidade de antes, com a mesma ternura desesperada que consome tudo.

Amá-la com loucura.

“Amei até o limite da loucura. Aquela que é chamada loucura, para mim, é a única maneira lógica de amar.” — Françoise Sagan

Odette e Elias, brilhantemente ilustrados por Helleborus (https://bsky.app/profile/xhelleborus.bsky.social).

Reencontros é uma campanha de RPG jogada offstream, utilizando o sistema Vampiro: A Máscara (5ªedição), mestrada por Vykos e compartilhada por Adri (Aleksis Kurki), Eve (Illiana Polich), Nanny (Tarja Kantola), Vivox (Sofia Giovanni) e eu (Elias Beaumont).

Eu só tenho a agradecer, a cada pessoinha aqui citada, pela construção conjunta dessa história que começou na cabecinha de Vykos e se estendeu a nós, que nos tornamos uma coterie tão desajustada e tão linda dentro desse desajuste. O texto ficou mais longo do que eu costumo produzir, mas não havia como cortar um único parágrafo dessa coisa experimental e maravilhosa que é o Elias. E eu sei que o menino Lili ainda será grande, e, quem sabe, ele também possa, no que a pós-vida permitir, ser feliz.

Obrigada. Por tudo. ❤

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Téo Santana
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Written by Téo Santana

Archaeology pupil, RPGist, Hot Wheels collector, ficwriter & V系 enjoyer.

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