The Light We Can’t See (01)

Téo Santana
6 min readOct 3, 2024

--

O Beijo da Górgona (2023), arte de André Martuscelli, e pode ser encontrada em https://bsky.app/profile/matanui.bsky.social/post/3k42xlrjvwg2r.

01. Abandonment

Ao cair da madrugada, quando as montanhas já estavam cobertas por um espesso véu de sombras e todos os moradores de Petrásia já dormiam, pés apressados cortavam um caminho pela floresta. O vento gelado silvava por entre os galhos, e arrastava consigo o som das pisadas rápidas e das risadas cruéis daqueles que arrastavam a moça até a boca da caverna. Cega de nascença, ela não podia ver o local para onde a levavam, mas também não sentia o terror crescer em seu interior. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, aquele dia chegaria. O dia em que aqueles que sempre a desprezaram por sua ausência de visão se livrariam dela como quem se livra de um saco de restos.

Eirene não focou suas energias em se debater ou tentar lutar contra seus captores. Não gritou, tampouco implorou para que a deixassem ir. Aqueles homens ainda se deram o trabalho de atar uma espécie de lenço ao redor de seus olhos, um toque inútil para alguém que já não enxergava, mas o simbolismo pesava. Eles queriam humilhá-la, reafirmar que a escuridão era seu destino. Considerando como havia sido toda sua vida e aquele último requinte de crueldade, talvez eles estivessem lhe fazendo um grande favor.

A entrada da caverna era relativamente estreita, guardada por rochas pontiagudas e cobertas de musgo, onde a umidade escorria em filetes gotejantes. O cheiro de terra molhada, salitre e fezes de morcegos era sentido à distância, dando uma leve dimensão da atmosfera fétida e opressora que deveria dominar seu interior. O vento a soprar em suas profundezas batia e ressoava nas paredes de pedra, dando a impressão de que a caverna estava viva e gemia de dor e tristeza pelos tantos outros que ali haviam encontrado seu fim.

Eles não disseram uma única palavra quando a jogaram pela abertura entre as pedras. O impacto seco de seu corpo contra o chão frio foi forte o suficiente para arrancar-lhe o fôlego e, por um momento, tudo o que Eirene conseguia ouvir era sua própria respiração ofegante e o som distante e entrecortado de folhas e pequenos galhos sendo esmagados sob os pés dos homens enquanto se afastavam.

A moça tentou se levantar, mas a dor em seus braços e em uma das pernas a impediu. Ela se arrastou até uma das pedras mais próximas, buscando algum abrigo do frio que lhe açoitava a pele e fazia arder os arranhões e ferimentos causados pela queda. Inspirando profundamente, sentiu náusea, e, enfim, sabia onde estava, assim como também sabia o que aconteceria ali. Todos na aldeia sabiam da história da criatura que habitava aquela caverna malcheirosa. A górgona que comia carne humana e transformava homens em pedra. Uma lenda que se tornou real demais para aqueles que ousaram cruzar seu caminho, e ao encontro da qual eram levados os criminosos e os indesejáveis como ela. Ali se respondia mais uma dúvida sobre a venda: além de humilhar a vítima, queriam brincar também com o monstro.

Não haveria salvação. Ela já estava morta.

A criatura, que até aquele momento repousava nas profundezas mais escuras da caverna, foi despertada não pelo som dos passos, vozes ou da queda de algo em seu refúgio, mas sim pelo cheiro de medo que o vento frio carregou para dentro. Para a górgona, cada pessoa que entrava em sua caverna trazia consigo um rastro de pavor, sua respiração formava pequenas nuvens de desespero, seu suor cheirava a medo de morrer. Era assim que ela vivia: alimentando-se primeiro do terror daqueles que ali caíam, e, depois, de suas expressões de horror absoluto, eternizadas ao transformá-los em estátuas de pedra que, para todo o sempre, habitariam com ela nas trevas da infame caverna. A górgona deslizou pelas pedras em direção ao local onde estava sua futura vítima, cada movimento de seu corpo serpentóide suave e gracioso, mas cheio de uma força que fazia rolarem algumas pedras soltas abaixo de si.

De longe, ela viu uma silhueta encolhida num canto, sua figura pálida e delicada em completo contraste com a e escuridão da caverna. Seu cabelo, longo e de um tom profundo, parecia emoldurar seu rosto delicado como sombras suaves, enquanto suas feições transmitiam uma serenidade que em muito destoava daquele ambiente opressivo. A górgona hesitou. Algo estava diferente desta vez. As vítimas costumavam gritar, correr, tentar escapar até mesmo antes de vê-la. Mas essa mulher não se movia, não se debatia, e, mais estranho ainda: o cheiro do medo não vinha dela. O pavor carregado pelo vento certamente pertencia àqueles que ali a tinham deixado, os covardes que, àquela altura, provavelmente estavam tranquilos em suas casas, desfrutando da companhia de suas famílias enquanto aquela pobrezinha tremia de frio, coberta de sujeira e sangue, apenas esperando pela morte.

A górgona sentiu uma inquietação em seu peito. De modo instintivo, sua mente começou a calcular a distância, o momento exato para atacar, todavia, algo a impediu de avançar de imediato.

Tendo a audição aguçada pela cegueira, ao menor rolar de uma pedra próxima, Eirene ergueu a cabeça, alerta. O silêncio ao seu redor parecia diferente. Mais denso. Ela sabia que havia algo ali, observando-a, e não se acovardaria diante do que quer que fosse. Estava pronta para partir, e não choraria, pois dar aos homens que haviam lhe traído um último gosto de a terem humilhado mais de uma vez não era uma opção.

A criatura se aproximou lentamente, seus olhos amarelos acesos, preparados para o confronto. Mas então, quando estava a poucos metros da moça, a górgona percebeu o lenço a lhe cobrir os olhos. Uma espécie de arrepio percorreu a espinha da criatura ao notar que não era apenas um lenço de tecido comum, e sim uma tira de couro de cobra. O que diabos significava aquilo? Era uma armadilha? Um jogo? Por que ela não estava reagindo? Era o medo que a paralisava ou havia algo mais?

Um sibilo suave escapou dos lábios do monstro, mais uma advertência do que um ataque. Um aviso de que qualquer movimento imprudente seria o último.

Eirene ouviu o som, mas não recuou. Em vez disso, seus lábios se partiram e, por eles, soou sua voz melodiosa em resposta ao som da ameaça.

— Eu sei que estás aí — Disse ela, sua voz trêmula, porém firme. — Se for para me matar, faça-o de uma vez. Já estou morta para os que aqui me abandonaram.

Essa resposta desconcertou a criatura, que estacou onde estava, suas serpentes contorcendo-se em sua cabeça como se sentissem a confusão que ela própria experimentava. Isso era diferente de qualquer encontro que ela já tivera. A mulher não se agarrava ao desespero, tampouco suplicava por sua vida. Não adotava uma postura defensiva e nem lhe atirava paus e pedras. Ela parecia apenas… Conformada.

A górgona, apesar de toda a força e crueldade acumuladas dos anos de matança, não estava acostumada a essa reação, logo, não sabia o que fazer com ela. Muitos já haviam caído ou sido jogados ali, e alguns deles tentaram, em vão, bancar os corajosos, proferindo ofensas diversas e até tentando lutar - o que, dependendo da situação, era bastante divertido -, mas nenhum jamais havia soado como aquela jovem sem qualquer apego pela própria existência. A górgona não sentiu-se provocada. Estava apenas… Curiosa.

Após um segundo sibilar, que soou um pouco mais confuso que ameaçador, o monstro permaneceu a uma curta distância, estudando Eirene por mais alguns momentos antes de recuar, sumindo nas mesmas sombras das quais surgira.

Ao ser, uma vez mais, abraçada pelo silêncio quase absoluto, cortado apenas pelos ecos do vento e do gotejar por entre as pedras, Eirene suspirou, resignada. Por algum motivo, até mesmo o monstro que habitava aquela caverna a tinha abandonado.

--

--

Téo Santana
Téo Santana

Written by Téo Santana

Archaeology pupil, RPGist, Hot Wheels collector, ficwriter & V系 enjoyer.

No responses yet