Ne Grandit Jamais
Enquanto vigiava o pequeno corpo da criança que amava como se fosse fruto de seu próprio ventre, acariciando-lhe os cabelos castanhos, Léonie murmurava, com um décimo da voz há tempos não usada nas noites de gala da Maison, uma antiga canção que a avó costumava cantarolar para ela em sua hora de dormir.
Toi, mon amour, mon ami
Quand je rêve c’est de toi
Mon amour, mon ami
Quand je chante, c’est pour toi… ♪
A cainita continuou a cantar por alguns momentos, mesmo depois de Eva adormecer, saboreando o momento de paz e ternura. O quarto estava à meia-luz dançante do abajur infantil que produzia sombras de cavalinhos em um carrossel, e o silêncio era interrompido apenas pelo leve farfalhar das cortinas e o som distante da água do chuveiro no qual Blanche se banhava.
Diante da respiração da menor se tornando ritmada e tranquila, sinal de que havia caído no sono profundo, Léonie se interrompeu, sorrindo levemente, enquanto arrumava uma mecha do cabelo da criança atrás de sua pequena orelha e se inclinava para depositar um beijo suave em sua testa. O conteúdo da música jamais fora infantil para ser utilizado como canção de ninar, gerando, por algum tempo, certo mal-estar entre as velhas Teodoras por ela responsáveis em sua infância. “Não havia como educar uma criança dentro de um bordel” defendia a segunda, enquanto a primeira, do alto de sua imponente vulgaridade, rebatia que “a criança anterior sobreviveu muito bem nele e graças a ele”.
Mas Teodora Leroux III não era e jamais seria sua mãe — graças à morte e à Máscara, ela já nem existia mais. A abadessa tinha orgulho de seu passado e do que havia se tornado em sua pós-vida, e queria ser para a pequena Evangeline o retrato de uma mulher forte e que não se arrepende das próprias decisões. Entretanto, tinha de admitir que, por muitas vezes, até mais do que gostaria e deveria, pensou em como seria se pudesse criar sua pequena em uma realidade alternativa, longe daquele mundo. Longe da Maison. Longe de toda a luxúria e ganância das noites de Babillon. Longe da Camarilla e do pesado fardo da existência vampírica de Léonie Aubert, Toreador, a mãe-que-não-podia-ser.
Léonie fechou os olhos por alguns segundos, deixando-se embalar pelo cheiro do cabelo da criança. Um cheiro característico e enjoativo do shampoo infantil de chiclete gentilmente comprado por Martha Wilson para aquele único fim, e que havia se tornado não apenas o favorito de Eva, mas o seu também.
Os dedos aquecidos pelo poder do sangue deslizaram pela lateral do rosto da criança, fazendo-lhe um carinho na pequena bochecha rosada. Naquela noite, ela também havia demorado — ou melhor, se recusado — a dormir, tomada pela alegria de ter sua “mamãe Léonie” em casa cedo mais uma vez. Fugiu da cama, tirou todos os brinquedos da caixa (sob os protestos de Blanche) e praticamente obrigou Léonie a construir com ela um castelinho de blocos, do qual logo se cansou, voltando sua atenção para um baile de bonecas. Mes poupées vont à la fête ce soir!, dizia ela, com um sotaque francês ainda mais quebrado que o da própria Léonie enquanto, no peito da mais velha, o coração reanimado pelo rubor da vida parecia se rachar.
— Eva, ma pétite étoile — Léonie murmurou, quase inaudivelmente, para não acordar a menina. — Se eu pudesse, te manteria assim para sempre, meu bebê. A infância é tão fugaz, e, ao mesmo tempo, tão preciosa.
Ela sabia que seus pensamentos eram, em parte, egoístas. Querer que Eva permanecesse para sempre uma criança era um desejo que ia contra a própria natureza do crescimento e da mudança. No entanto, o amor que sentia por ela era tão profundo, tão avassalador, que às vezes a fazia desejar o impossível. Léonie queria proteger Eva de todas as dores e desafios da vida, queria que ela vivesse eternamente na inocência e na pureza da infância. E havia, sim, um meio — mas, para isso, teria de matá-la.
Parecendo sentir o peso dos pensamentos da mãe adotiva, a menina se mexeu, apertando com um pouco mais de força Gigi, a girafa de pelúcia com a qual dormia desde seus primeiros meses de vida.
— Mas sei que você deve crescer, e deve descobrir o mundo por si mesma — Prosseguiu a Toreador, enquanto observava o suave subir e descer do peito de Eva. — E, enquanto você cresce, estarei aqui, te guiando e protegendo da maneira que me é permitida.
Léonie sentiu em seus olhos a ardência das lágrimas querendo se manifestar. Era uma mistura de alegria e tristeza, de amor e saudade antecipada. A imortalidade lhe dera uma nova perspectiva sobre a vida, mas também trouxera consigo a dor de ver aqueles que amava partirem sem ela. A ideia de que Eva, a luz de sua vida, também estava sujeita a essa cruel realidade a atormentava profundamente.
De todas as constantes lembranças da fragilidade e brevidade da vida humana, Evangeline Bonnet era a maior e mais destrutiva delas.
E junto a todas as suas dores, perturbava-lhe também a sensação de impotência. Sentia-se incapaz de aliviar a dor e a culpa, incapaz de garantir que Eva tivesse uma infância normal ao lado de sua segunda mãe, como tanto desejava. Quando brincava com a menina e a via sorrir; quando lhe ensinava palavras em francês e a via repetir o termo várias vezes, tentando acertar a pronúncia; quando a via dormir, abraçada à sua velha Gigi, como fazia naquele momento; ouvia a Besta dentro de si sussurrar que as noites eram amantes gentis, mas os dias eram assassinos implacáveis. Ela não podia ver sua pequena durante o dia, não podia levá-la à escola ou à sorveteria, porque, embora seu amor fosse maior e mais forte que qualquer coisa no mundo, Eva ainda era humana, e Léonie, uma vampira destinada a ver tudo o que amava nascer, crescer, afastar-se e morrer antes dela.
Por mais irracional que fosse, ele nutria a esperança de que um dia encontraria uma maneira de tornar sua vida mais normal, mais humana, imaginando como seria poder viver, pelo menos mais uma vez, sem limitações. Por mais que odiasse admitir, sentia saudade do sol, do calor do dia, das atividades simples e mundanas que faziam parte de uma vida comum. Ver Eva brincar à tarde, correr livremente em um parque, entre outras vivências comuns entre mãe e filha, eram coisas que Léonie jamais poderia compartilhar. Cada sorriso forçado, cada lágrima escondida era um lembrete constante de sua falha em protegê-la completamente. Como era possível ser mãe, amar tanto, e ao mesmo tempo ser forçada a viver nas sombras, distante das coisas simples que fazem a vida valer a pena?
— Eu te amo tanto, Evangeline. Mas sei que não posso ser a mãe que você precisa — Léonie se levantou da cadeira, dando uma última olhada na criança adormecida com certo pesar.— Você está crescendo, e eu… Eu estou presa nesta existência.
Dando as costas para a cama, a vampira deixou o quarto da criança, encostando levemente a porta e rumando para o banheiro. De repente, parecia uma boa ideia dividir o banho com Blanche.
_____________
Léonie Aubert, Evangeline e Blanche Bonnet são personagens autorais inseridas na campanha de RPG Babillon by Night, exibida no canal SemFronteiras RPG.