Estação Tormento — cap. 2
Apesar do seu silêncio
Aviso de gatilho: trata de temas sensíveis como depressão e suas interferências no cotidiano.
Os dias de Missy se arrastavam como páginas de um livro interminável, onde cada capítulo parecia contar a mesma história sem emoção. Não havia clímax, não havia mudança, apenas a repetição enfadonha de eventos que ela já havia decorado como a letra do hino nacional cantado na escola toda sexta pela manhã. Cada manhã parecia igual à anterior, como um relógio quebrado que marcava sempre a mesma hora. Ela acordava sempre ao som do mesmo despertador, vestia-se com as mesmas roupas desgastadas e tomava o mesmo café morno e exagerado no açúcar, enquanto lá fora o mundo girava sem que ela realmente participasse dele. O trajeto até o trabalho era sempre o mesmo: o metrô frio, o vagão lotado, as expressões vazias das pessoas à sua volta e a sensação persistente de que a vida se repetia em um ciclo de monotonia. Não havia nada de novo. Não havia nada a esperar.
Na Gallifrey, cafeteria onde trabalhava, os mesmos rostos passavam por ela em uma fila interminável, sempre pedindo os mesmos cafés com os mesmo tons automáticos, distantes, impessoais. As horas se arrastavam, marcadas pelo som irritante da máquina de expresso e o leve tilintar das xícaras em seus respectivos pires. As vozes dos clientes, quase sempre com pressa, tornavam-se um zumbido constante ao fundo, misturando-se com as músicas pop meio tristes que ressoavam pelas duas caixas de som nas paredes e das batidas nada ritmadas nos teclados dos notebooks dos donos de startups. Debaixo das luzes amarelo-alaranjadas, Missy mantinha sua constante falta de expressão diante do ir e vir das pessoas como se estivessem numa estação de metrô. Era como uma esteira de produção interminável. Os movimentos de servir café, misturar ingredientes e entregar pedidos tornaram-se tão automáticos quanto os de um operário em uma linha de montagem fordista. Cada cliente que chegava ao balcão era apenas mais um pedido com pernas que exigia os mesmos gestos feitos e refeitos à exaustão: tirar o copo, apertar o botão da máquina, servir, entregar, repetir. À exceção, é claro, do adorável Wilfred Mott, ou “vovô Wilf”. Ele, com suas crenças em teorias da conspiração, passava longos minutos pendurado no balcão contando a ela sobre a nave extraterrestre que ele jura que sobrevoou o centro de Londres no Natal passado, e sobre a neta, Donna, da qual ele morria de orgulho e que em breve se casaria.
Fora do clima forçado de eterno pôr-do-sol dentro do estabelecimento, o retorno para casa seguia o mesmo padrão cinza. Ela parava no mercadinho da esquina e pegava as mesmas refeições congeladas de sempre, cujas embalagens descartáveis já se empilham há alguns dias em sua lixeira cheia. Ao chegar no apartamento alugado num bairro de segurança questionável, o ambiente desleixado a recebia sem julgamentos: as roupas espalhadas pelo sofá velho, os livros e revistas empilhados em lugares aleatórios e a pia que acumulava mais louça do que ela gostaria de admitir lhe diziam “bem-vinda de volta” com sorrisos afetuosos, como irmãos mais novos que esperavam o dia todo retorno da mais velha para brincar com eles. Ela sorria sem empolgação, abria uma das janelas e deixava entrar o som dos carros e vozes lá embaixo. “Enfim em casa”.
Sem pensar muito, Missy colocava a comida no micro-ondas, acompanhando sem muito interesse as primeiras voltas da comida sobre o prato giratório de vidro, os números em verde no visor digital marcando a contagem regressiva para mais um jantar desprovido de emoção. Depois, jogava-se no sofá enquanto esperava, o controle remoto já em mãos, ligando a tv de tubo e zapeando por vários canais; distraindo-se com um canal específico dedicado a vendas de produtos superfaturados até dar a hora de começar o Bad Wolf, seu programa de variedades favorito. Com a refeição pronta, ela comia diretamente da embalagem descartável, o brilho da televisão piscando à sua frente na forma de casos absurdos de pessoas revelando serem reencarnações de personalidades famosas já falecidas. É uma distração quase anestésica, cheia de cores e piadas genéricas que até a fazem rir, mas sua função principal é, na realidade, apenas preencher o escuro e o silêncio da noite. “É tudo que um cidadão médio fracassado precisa pra terminar bem a noite”, pensava ela, movendo-se minimamente apenas para praticar ‘lançamento de bandeja’ em cima da pilha de lixo que, na noite anterior (e na anterior antes daquela), prometeu a si mesma que levaria para baixo.
Cada noite replicava sua antecessora, todas envoltas em uma monotonia sufocante, porém, relativamente confortável. O passar do tempo era uma tortura silenciosa com a qual ela havia aprendido a coabitar em paz, enquanto existia, mas não vivia realmente.
Nessa rotina solitária, cinco dias haviam se passado desde o encontro no metrô, e Missy, em seu esforço para não se importar, conseguiu deixar o episódio para trás. O papel com o número da tal River seguiu esquecido no bolso do casaco, sendo frequentemente amassado por uma ou outra coisa trivial que Missy colocava ali, como se o destino o quisesse fazer desaparecer de alguma forma. Mas ele resistia, contra tudo e todos, sem que Missy soubesse, e estava apenas esperando o momento certo de voltar a causar sensação.
Missy não tinha planejado lavar roupa naquela semana. Na verdade, seu velho amigo, o fiel casaco marrom que ela usava quase todos os dias era uma daquelas peças que, na sua cabeça, ainda aguentava mais uma rodada de uso antes de precisar ser lavado. Mas, no fundo, sabia que já estava na hora, e aquele aroma forte de pó de café impregnado nas fibras do tecido, além das manchas de espuma de leite e cobertura de caramelo a lembraram disso na última vez que o vestiu. Assim sendo, era hora de aproveitar o dia de folga e fazer uma visita atípica à confiável lavanderia do bairro.
Muito bem recebida por Ruby, a atendente que era o mais próximo que tinha de uma amizade real, Missy entregou o casaco surrado no balcão, junto a um punhado de outras roupas que havia trazido em uma grande bolsa de tecido. Ela assistia distraidamente a moça a checar os bolsos das peças, algo que ela mesma vivia se esquecendo de fazer, até que seus olhos se perderam olhando um cachorro atravessar a rua através das portas transparentes do estabelecimento quando a voz de Ruby a trouxe de volta:
— Ei, Missy, você esqueceu isso.
Quando a jovem lhe estendeu um pedaço de papel junto a uma nota de cinco libras meio amassada puxados de dentro de um dos bolsos do velho casaco, Missy gelou. O coração acelerou de uma forma desconfortável ao ver o pequeno pedaço branco que parecia um fantasma de algo que ela não havia conseguido enfrentar.
— Obrigada — Respondeu nervosa, pegando apressadamente os itens e os enfiando num dos bolsos de suas calças de moletom. Do outro, tirou o valor referente à lavagem, depositou sobre o balcão de madeira polida de modo meio rude e saiu dali apressada, acompanhada pelos olhos verdes da moça. Missy geralmente era meio estranha, mas, naquela tarde, parecia um pouco mais.
Enquanto refazia o caminho de volta, pensou mais uma vez em jogar o papel fora — era o que, honestamente, já deveria ter feito. Ao passar por uma grande lixeira de rua verde, seu passo diminuiu até parar um pouco mais à frente do objeto. Missy ponderou por um minuto inteiro. “Seria tão simples”, pensou. Uma jogada rápida como se fosse uma embalagem de chiclete e o problema estaria resolvido. Sem dilemas, sem a necessidade de decidir mais nada que não fosse quantas colheres de açúcar em sua xícara de café morno e sem graça, e, quando passasse novamente por aquela lixeira, aquele saco de lixo já teria sido levado.
Mas ela hesitou. Por mais que tentasse se convencer de que o número não significava nada, de que aquela estranha mulher provavelmente tinha feito isso por brincadeira, alguma coisa dentro dela não deixava que aquele pedaço de papel fosse parar no lixo. Fingiu ignorar a existência da lixeira e continuou caminhando. O vento estava mais frio e soprava com força, levantando poeira e folhas, bagunçando seus cabelos já num penteado meio frouxo e trazendo à tona a ansiedade que havia tentado enterrar. Era melhor se apressar. Pelo jeito do tempo, cairia uma chuva daquelas.
Ao voltar para casa, Missy se jogou de costas contra a porta recém-fechada, metendo a mão no bolso e tirando dali a nota de cinco libras e o infame pedaço de papel. Sentindo os dedos queimarem ao manuseio da textura ainda lisa, segurando a respiração, desdobrou-o, encontrando ali a mesma sequência numérica e a mesma palavra. Então, aquilo tinha acontecido mesmo. O beijo no metrô tinha sido real e, em algum lugar da cidade, aquela mulher provavelmente esperava por uma ligação. Incapaz de lidar com aquilo, ela o colocou sobre uma mesinha ao lado do sofá e correu para se ocupar de qualquer outra coisa que tirasse de sua cabeça as memórias de cinco dias atrás. O bilhete permaneceu ali durante horas, uma presença constante no canto de seu campo de visão, mas ela não se atreveu a tocá-lo novamente.
Noite. A chuva que atingiu Londres já durava algumas horas, a ponto de Missy sequer ter conseguido buscar suas roupas limpas no final da tarde. A temperatura tinha caído drasticamente, e a barista, dentro de um confortável suéter roxo e com uma manta sobre as pernas, estava jogada de qualquer jeito no sofá, com o controle remoto pendendo de uma das mãos enquanto os sons de Bad Wolf enchiam a sala. As luzes piscantes do estúdio e as vozes animadas da apresentadora Rose Tyler e seus excêntricos convidados eram quase um zumbido de fundo, como se aquele show, que tantas vezes a distraía, agora fosse irrelevante. O problema era que, por mais que os rostos na tela fossem conhecidos e os esquetes engraçados e até um tantinho previsíveis, ela simplesmente não conseguia focar em nada. Sua mente estava longe, perdida entre os acontecimentos do metrô e aquele maldito pedaço de papel com o número de telefone. O pedaço de papel que, àquela altura, parecia a ponto de abrir um buraco na madeira da mesinha na qual havia sido esquecido.
Ela levantou o controle remoto e aumentou o volume do programa, como se isso pudesse silenciar a confusão em sua cabeça. Não funcionou. A imagem da mulher do vagão, com seus cachos dourados e aquele sorriso enigmático, repetia-se em sua mente como uma fita de vídeo sendo rebobinada de modo a exibir, várias e várias vezes, uma cena específica. A sensação do momento do beijo acidental, a queimação da vergonha imediata, e depois a surpresa ainda maior quando aquela que poderia se chamar River lhe entregou o número, tudo voltava em ondas, fazendo o estômago de Missy se revirar.
Cada vez que ela olhava de relance para o celular ao seu lado no sofá, sentia as mãos suarem e o coração acelerar. “E se eu ligar?” pensava pela milésima vez naquela noite. “E se ela atender?” A indecisão era paralisante, e, ao mesmo tempo, ela sabia que não seria capaz de relaxar enquanto não fizesse algo a respeito. O problema era que, por mais que quisesse agir, ligar, entender o que aquilo tudo significava, um medo sufocante a impedia. Medo de que River fosse apenas mais uma daquelas ilusões, como todas as outras pessoas que a vida colocava em seu caminho e que logo desapareciam por não conseguirem lidar com o que ela havia se tornado depois da última grande decepção.
O programa seguia em frente, as risadas e palmas do auditório crescendo em resposta ao rapaz que afirmava ter uma entrada tecnológica em sua testa que se abria num estalar de dedos e lhe permitia absorver o conhecimento sobre qualquer coisa por meio da internet, mas Missy mal se dava conta do que acontecia na tela. Era como se estivesse em dois lugares ao mesmo tempo — no metrô abarrotado, sendo amassada e surrada por alguns ombros e bolsas até ser jogada contra os lábios da outra mulher, e ali, no sofá, sozinha, tentando decidir o que fazer com um pedaço de papel que tinha potencial de mudar tudo ou absolutamente nada em sua vida.
Voltou o olhar indeciso para a mesinha ao lado do braço do sofá, encarando o bilhete onde o nome River parecia brilhar de uma forma específica sob a luz amarela e fraca do abajur que o iluminava junto a uma caixa de pizza do Dalek’s. E então, parecendo guiada por uma loucura momentânea, pegou o celular que repousava a seu lado no estofado e desbloqueou a tela, os dedos trêmulos digitando o indicado no papel com uma falta de precisão surpreendente, ocasionando diversos erros e números apagados e redigitados algumas vezes; e finalmente apertou o botão de chamada.
Missy não sabia bem o que a impulsionara a mutar o programa, finalmente pegar o telefone e discar aquele número. Talvez fosse a insistência silenciosa daquele bilhete, que resistiu ao passar dos dias, ou o fato de que, uma vez na mão de Ruby, aquele pedaço de papel parecia ter retomado todo o seu estranho poder. Talvez fosse apenas o peso da própria inércia, de saber que seus dias eram sempre iguais, que a fez querer romper com a própria monotonia pelo menos uma vez, mesmo com medo das possíveis consequências daquilo. Ou, ainda, talvez fosse isso que ela queria provar: que a suposta River não passava de um devaneio, uma miragem, uma ideia estúpida de que algo interessante poderia realmente acontecer na sua vida vazia. Porque, no fundo, Missy realmente acreditava que coisas assim não aconteciam para pessoas como ela. Pessoas que andam de cabeça baixa e evitam contato visual com o mundo não dão a sorte de trombar com uma deusa de cachos dourados, olhos verdes e sorriso largo que lhe dava o telefone assim, de graça, sem pedir nada em troca.
Com o telefone na orelha, a respiração presa, Missy ouviu o toque se prolongar por alguns segundos. No segundo, quase desligou. Não deveria ter feito isso. Parecia um erro, um movimento impulsivo demais para alguém como ela, acostumada ao conforto da inércia. No terceiro toque, sua respiração acelerou. Tudo parecia suspenso naquele momento: o frio, o mundo ao redor, o tempo. E então, ao quarto toque, antes que Missy pudesse desistir, como que surgida do mais absoluto nada, uma voz feminina, sonolenta e meio rouca atravessou a linha.
— Alô?
Missy congelou. O relógio redondo na parede apontava as horas: quase meia-noite. Puta merda. Ela não esperava que alguém fosse atender. Não esperava nada disso. Na verdade, ela esperava que o universo confirmasse sua teoria de fracasso. E, no entanto, lá estava aquela voz, quebrando todas as expectativas.
— Alô? — A mulher repetiu, dessa vez com um leve tom de curiosidade.
Missy puxou o ar, a voz saindo quase num sussurro quando finalmente respondeu:
— Oi… É, hm, Missy. Do metrô… Daquele… Daquele dia — Balbuciou, a voz falhando um pouco no final. A vergonha subiu pelo pescoço, queimando o rosto, e ela desejou que não tivesse ligado, mas, àquela altura do campeonato, seria rude desligar na cara da moça.
Do outro lado, a resposta veio na forma de uma risada baixa e suave, o tipo de riso que deixa quem o ouve com as mãos geladas e o coração quente ao mesmo tempo.
— Ah, Missy — River saboreava o nome como se já o conhecesse bem. A voz era suave e sensual, como se sua dona estivesse sorrindo do outro lado da linha. Missy congelou por um instante, surpresa pelo som ser tão próximo, tão… Familiar. — Então é esse seu nome. Passei alguns dias tentando encaixar um nome ao seu rosto e nenhum pareceu bom, sabe? Devo admitir que Missy é realmente muito melhor.
Por alguns segundos, Missy sentiu-se boba. Não podia ser tão ruim quanto sua cabeça fizera parecer nas últimas quatro ou cinco horas. A mulher existia, lembrava-se dela e não parecia incomodada por ter sido, provavelmente, tirada de seu sono próxima à uma quase meia-noite fria e chuvosa.
— Eu estava começando a achar que você não ligaria.
A barista se mexeu desconfortavelmente no sofá, como se o pouquíssimo calor da casa aumentasse e se tornasse sufocante de repente.
— Eu... Pensei em jogar fora o bilhete — Admitiu, o tom mais baixo e fraco, quase com medo de ser ouvida.
— Mas não jogou — A resposta de River veio como uma constatação, cheia de uma calma que só aumentava a tensão.
Missy fechou os olhos por um momento, tentando organizar os pensamentos que se embaralhavam mais rápido do que ela podia processar. Mordeu o lábio, sem saber exatamente o que e como dizer.
— Não sabia se você estava falando sério.
O som de molas e tecido se mexendo dava a impressão da mulher estar se sentando na cama.
— Eu sempre falo sério, Missy — Respondeu a outra, a voz baixa e envolvente em meio a um bocejo curto. — Restava saber se você acreditaria.
— Achei que poderia ser uma piada ou algo assim.
— Uma piada? — River riu. O som misturando ironia e leveza reverberou no ouvido de Missy, fazendo-o queimar um pouco. — Eu nunca brinco com essas coisas, querida. Quando eu quero algo, vou atrás — Houve uma pausa, e Missy ouviu uma respiração profunda do outro lado da linha. — E apesar do seu silêncio, eu te quis mais.
A frase atravessou Missy como o golpe de uma lâmina, mexendo com algo dentro dela que há muito tempo estava adormecido. Era como se River soubesse exatamente o que dizer para quebrar suas defesas, uma provocação que era ao mesmo tempo gentil e intensa. A barista abriu a boca para responder, mas as palavras fugiram. Ela sentiu as palmas das mãos suadas, inclusive a que segurava o telefone em sua orelha quase fez o aparelho escorregar. River jogava com as palavras de uma maneira desconcertante, como se estivesse puxando fios invisíveis que controlavam o corpo e a mente de Missy.
— Você ainda está aí? — Perguntou River, interrompendo o silêncio prolongado.
— Estou — Missy respondeu rapidamente, pigarreando para limpar a garganta que arranhava, o nervosismo em sua voz sendo claro como água. — Eu só… Não sei o que dizer.
— Não precisa dizer nada agora, docinho — River provocou. — Mas, quem sabe, um café? Algo bem mais simples e direto do que uma ligação.
A ponto de colapsar, Missy quase riu de puro desespero. A ideia de um café, algo tão básico (e feliz ou infelizmente comum no seu dia-a-dia), parecia ao mesmo tempo tentadora e apavorante. A voz do outro lado, no entanto, era como um convite irresistível, e ela sabia que, mais cedo ou mais tarde, acabaria cedendo. Levou quase um minuto todo pensando até ser bruscamente puxada de volta à ligação pela voz de River:
— Se estiver com medo, leve uma faca. Levarei uma também.
— Eu… Eu posso pensar nisso — Respondeu a morena no automático, já imaginando o calor que subiria ao seu rosto e sua completa falta de tato social no momento em que se encontrassem pessoalmente pela segunda vez na vida.
— Faça isso, Missy — River respondeu, sua voz mais baixa e mais provocante do que nunca. — Considere o convite e me retorne. Mas não demore muito. O tempo nunca foi meu ponto forte.
E com isso, a ligação terminou, deixando Missy segurando o telefone em uma mão trêmula, o telefone quente ainda colado à orelha direita e o olhar assustado encarando a tv no mudo. Ela ficou sentada por mais alguns minutos, as luzes e cores brilhantes na tela ainda a se mexer. Mas, pela primeira vez em muito tempo, não conseguiu se perder no brilho superficial da televisão e optou por desligá-la, imergindo a sala no breu que só era quebrado pelo foco de luz amarela do abajur sobre a mesinha. O nome e a voz de River ainda ecoavam na mente de Missy, misturando-se ao som úmido do aguaceiro que caía lá fora.
Missy levantou-se lentamente e, sem saber o porquê, caminhou até a janela, encarando os pingos que deslizavam pelo vidro numa corrida sem vencedores. O celular era agora apertado junto ao peito, e os pés cobertos pelas meias listradas não sentiam o incômodo do frio do piso.
— Apesar do meu silêncio, você me quis mais… — Murmurou para si. Aquela frase a tinha perturbado tanto que mal conseguira dizer a River que café era a última coisa que ela queria tomar naquele encontro.
Encontro. Deuses. Se aceitasse aquela proposta maluca, Missy teria, depois de tantos anos, um encontro com alguém. Não podia ser tão ruim assim sair com alguém que, mesmo da maneira mais absurda já considerada por Missy, havia demonstrado algum interesse em estar na companhia dela — mesmo que fosse para a conversa morrer depois de alguns minutos e ela ficar encarando desconfortavelmente o tampo da mesa, os arranhados na tela do aparelho celular, as plantas do estabelecimento ou qualquer outra coisa que impedisse o contato visual direto com aqueles olhos verdes e brilhantes.
E ela não poderia ter falado sério sobre a faca.
…Poderia?
_________________________
Créditos ao querido Kamilo pelos trechos que em que ele sabe o que ele fez, e por não ter me deixado desistir desse texto ainda. ILY. 💜