Estação Tormento — cap. 1

Téo Santana
8 min readSep 13, 2024

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Um beijo no metrô

Aviso de gatilho: trata de temas sensíveis como depressão, ideações suicidas e suicídio consumado sem descrições gráficas.

Fins de expediente sempre trazem uma multidão exausta, amontoada entre os assentos e os poucos centímetros de chão livre. Missy mal conseguia encontrar um espaço para se segurar, pressionada contra corpos, mochilas e pastas executivas. Sacolejando entre a pressa e a exaustão de metade de uma população, suas mãos buscavam apoio numa das barras acima, mas o vagão a se mover de maneira estranha fazia seus dedos finos deslizarem pela superfície fria do metal.

O som abafado do trem ecoava pelos túneis, uma sinfonia constante e agoniante de ferro e ruído na qual as vozes em fofocas entre colegas de setor e ligações sendo atendidas faziam um coro desarranjado, desarmônico. Em meio à dificuldade de se manter firme, Missy encontrava algum tempo para distrair a visão cansada, olhando de soslaio para os pedaços de cartazes de propaganda desbotados, tentando ignorar o aperto desconfortável das pessoas ao seu redor. Seu cabelo castanho, preso de forma desleixada, já estava desalinhado, algumas mechas caindo teimosamente sobre seu rosto. Ela suspirava baixinho, torcendo para a próxima estação chegar logo, pessoas descerem e o ar voltar a circular.

Então, de repente, aconteceu. O trem desacelerou bruscamente, sacudindo todos dentro do vagão como uma onda furiosa que atinge a praia sem aviso. O corpo de Missy foi empurrado para a frente, estranhamente atravessando o mar humano que, em sua cabeça, servir-lhe-ia de amparo em uma situação como aquela. Antes que ela pudesse reagir, sua mão não encontrou a barra e, tendo o corpo magro lançado para a frente como um boneco de pano jogado ao acaso, colidiu diretamente com o corpo de alguém.

O impacto em si não foi um grande problema, mas seu efeito foi o bastante para fazer com que ela perdesse completamente o controle. Missy não teve tempo de processar, apenas sentiu seus lábios tocarem os de outra pessoa, num beijo que não deveria ter acontecido. Um beijo desequilibrado, desastrado, levemente doloroso. O choque percorreu seu corpo, e ela, espalmando as mãos no peito do estranho, rapidamente se afastou. Entre as pessoas aglomeradas, não podia ver seu reflexo nas janelas escuras, mas, pelo queimar insistente nos seios da face, tinha a plena certeza de que o rosto pálido estava vermelho como nunca antes.

Com o coração acelerado, ela levantou o olhar para a pessoa diante dela, e seu pavor só fez aumentar. Era uma loira, não muito alta, curvilínea, com vastos e impressionantes cachos quase como uma moldura angelical em volta de seu rosto perfeitamente simétrico. Os olhos verdes da mulher brilharam por um segundo, algo entre a surpresa e o divertimento. Seu sorriso era misterioso, quase diabólico, mas, por sua expressão, ela não parecia se incomodar com o que acabara de acontecer. Na verdade, havia certa… Gentileza escondida naquele olhar.

Paralisada pelo constrangimento, Missy tentou murmurar algo, mas as palavras não saíram. Entaladas em sua garganta, chegaram a lhe causar dor, tamanha a urgência que tinha de ser perdoada pela atrocidade que acabara de cometer, porém, por algum motivo, parecia um absurdo ainda maior saber que a pessoa desconhecida que tinha, acidentalmente, acabado de beijar, era uma mulher e, diante daquele fato, nenhum pedido de desculpas parecia suficiente. Sua mente era uma confusão, o calor da vergonha tomando conta de toda a área entre seu pescoço e orelhas. O vagão, apertado como estava, parecia agora ainda menor. Constrangida, ela queria virar o rosto, sem coragem de encarar aquela mulher. Queria fixar seus olhos no chão, procurando algum chiclete velho pisoteado há meses, mas, por alguma razão, não conseguia. Só não conseguia.

“O metrô informa a todos que estamos com velocidade reduzida e maior tempo de parada devido à presença de usuário na via”, reverberaram os alto-falantes dentro do vagão, trazendo Missy de volta à realidade na qual ela havia acabado de beijar alguém que, certamente, não esperava ser abordada dessa forma. Com aquele nó do tamanho do mundo arranhando sua garganta, murmurou um “me desculpa” sofrido e, através de uma brecha que pareceu se abrir por milagre entre uma jovem alternativa de fones de ouvido neon e um homem de terno, deslizou entre os ombros e bolsas à tiracolo, buscando, dentro dos limites impostos pela superpopulação londrina aglomerada naquele espaço apertado, a maior distância possível da estranha cujo espaço pessoal ela havia violado.

O tempo até o retorno da viagem pareceu interminável, e, dentro daqueles horríveis minutos em que o calor era insuportável mesmo no auge das 7:15 da noite, Missy se forçou a voltar seus pensamentos ao ocorrido que mais deveria importar, e ao qual ninguém estava dando a devida atenção. Usuário na via, disse a voz masculina grave nas caixas de som. Algum pobre coitado desgostoso o bastante com a vida a ponto de querer botar um fim nela de uma das maneiras mais dolorosas já conhecidas e, enquanto um punhado de funcionários se esforçava para recolher o que havia sobrado dele, tentando lhe dar um mínimo de dignidade depois do fim, as pessoas ao seu redor só faziam resmungar e olhar para seus relógios e telas brilhantes, reclamando sobre o horário em que finalmente chegariam em suas casas. Missy sentia pena, mas não julgava o infeliz que, mesmo após tal ato de desespero, ainda conseguia ser esnobado pela sociedade. De vez em sempre, ela também tinha vontade de fazer alguma loucura, saber se faria falta a alguém, e imaginava que a situação dela seria a mesma.

Olhou para a janela, observando a monótona parede do túnel dominado por aquela estranha luz amarela. Missy sempre sentia que estava do lado de fora, olhando para o mundo através de uma janela que nunca conseguia abrir. As conversas ao seu redor eram como ruídos distantes, ecos de uma vida que não conseguia alcançar. Ela tentava participar, tentava sorrir nos momentos certos, acenar com a cabeça no ritmo das piadas, mas nada parecia genuíno. Era como se algo em seu interior se recusasse a se conectar, como se houvesse uma barreira invisível entre ela e o resto das pessoas. Como se, em todos os dias de sua irritante vida, estivesse presa no vagão cheio daquele metrô.

Era em dias como aquele que Missy mais desejava sumir de vista, como uma folha que se desprende da árvore e se deixa levar pelo vento, sem rumo, sem destino. Era um desejo silencioso, que surgia no fundo do peito toda vez que sentia os olhares passarem por ela como se não existisse. A ideia de não mais voltar não era triste para ela — era libertadora. Ela fantasiava com a paz que viria ao não precisar mais lutar contra aquela sensação constante de inadequação, de não pertencimento. As tentativas de criar laços sempre resultavam em um esforço solitário e frustrante. Não importava quantas vezes tentasse se aproximar, as pontes pareciam ruir antes mesmo de serem construídas. Missy olhava para o próprio reflexo nas janelas do metrô, sua figura esmaecida entre o brilho das luzes artificiais, e se perguntava se, talvez, fosse mais fácil ser uma sombra. Somente uma presença leve, que passasse despercebida, sem a expectativa de ser notada ou compreendida. Talvez o usuário da via tivesse pensado o mesmo.

Pensando bem, mesmo naquele momento, ela também estava se colocando num lugar no qual também não cabia. Pessoas suicidas tentam se matar, pessoas depressivas como ela querem apenas… Desaparecer.

Ao restabelecer da viagem, as próximas estações passaram como borrões. Agora, Missy mal sentia o movimento do metrô, e novos minutos sem fim rodavam ao seu entorno e a sufocavam enquanto, através das janelas, via a Londres noturna passar em rastros de luzes erráticas, nódoas brilhantes difusas que a deixavam um pouco tonta. Quando o transporte finalmente desacelerou, alcançando a estação onde ela desceria, Missy se apressou, determinada a sair dali o mais rápido possível e seguir sua noite como se tudo não tivesse passado de um sonho bizarro. Mas, antes que pudesse escapar pela porta, sentiu algo agarrar seu ombro.

Pulando sobre o vão entre o trem e a plataforma, assustada, Missy se virou para ver que outra brincadeira de péssimo gosto a vida lhe pregava.

A mulher loira, aquela que ela havia acidentalmente beijado, forçando o caminho entre um homem de camisa de time de futebol e uma mulher alta que abraçava a mochila em frente ao peito, encarava-a pelas portas abertas. Havia uma clareza quase predatória em seu sorriso, mas ao mesmo tempo um toque de algo… Mais leve. Sem dizer uma única palavra, a mulher sacudiu o braço estendido na direção de Missy. Em sua mão, apertado entre os dedos indicador e médio, havia um pedaço de papel dobrado. Hesitante, mas manipulada pelo brilho autoritário daqueles olhos verdes, Missy pegou o papel. Era um pequeno retângulo dobrado ao meio com as bordas irregulares, denotando que aquele fragmento havia sido rasgado de um caderno ou algo parecido.

Missy, confusa, olhou para o papel e depois para a loira, que agora a encarava com uma sobrancelha levemente arqueada.

— Me liga — Disse a mulher, com uma voz baixa e suave, quase como uma ordem, mas com um toque divertido. O sorriso diabólico retornou, e então, com a mesma leveza sinistra com que havia aparecido, a loira deu um passo para trás e sumiu atrás daquelas duas pessoas, que logo foram tampadas pelas portas do vagão se fechando com um chiado.

Missy ficou ali, parada na plataforma, enquanto o som do transporte se movendo voltava a preencher o espaço. O pedaço de papel estava firme em sua mão, e sua mente, ainda mais acelerada, tentava compreender o que acabara de acontecer. Ela olhou para o papel que segurava, e, com os dedos trêmulos, abriu. Havia ali uma sequência numérica escrita à mão em caneta preta e, abaixo, a palavra River.

Seu coração deu um salto. O vento que passou junto com o movimento do compilado de vagões levantou sujeira e pequenos pedaços de papel que rodopiaram no ar, dançando nos trilhos escuros abaixo de seus pés. Ela piscou algumas vezes, tentando voltar ao presente, enquanto o som do trem se dissipava pelo túnel.

— River — Repetiu ela para si mesma, os olhos muito azuis encarando os números e as letras naquele pedaço de papel branco. — Seu nome é River?

A palavra parecia flutuar em sua mente, tão irreal quanto tudo o que havia acontecido naquele dia. O bilhete estava ali, material e concreto, mas a realidade do que ele significava parecia escorregar por entre seus dedos como água de torneira. Um beijo acidental, um sorriso diabólico, e agora um número de telefone de alguém que parecia mais um sonho do que uma pessoa real.

Sem saber o que fazer, Missy suspirou e enfiou o papel no bolso do casaco. O vento ainda soprava leve pela estação, empurrando um pouco mais de sujeira pelos trilhos, enquanto ela se dirigia para a saída, com passos incertos e pensamentos ainda mais dispersos. Ao sair para a rua, o frio da noite a envolveu, cortante e familiar, fazendo-a encolher os ombros dentro do casaco — mas o papel no bolso parecia esquentar como se, a qualquer segundo, fosse queimar e abrir um buraco no tecido.

Ao passar por uma lixeira na calçada, por um segundo, ponderou se deveria simplesmente jogar aquilo fora. Era só um número, nada mais que um momento absurdo numa vida cheia de absurdos. Mas seus dedos hesitaram ao tocar o papel no bolso, como se algo a prendesse àquela chance. Desistiu e seguiu seu rumo. Enquanto caminhava, o papel continuava a aquecer contra a lateral de sua perna.

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Sim, essa é (mais) uma fic AU de Doctor Who, mas achei depressiva demais pra estar no ao3, mesmo já tendo escrito coisa pior.

E sim, obviamente eu me inspirei na música Tormento, da minha deusa Mon Laferte, pra compor o título da fic e dos capítulos que se seguirão. Provavelmente a canção vai guiar a coisa toda, embora essa situação em específico tenha vindo do primeiro episódio da 1ª temporada de 2 Broke Girls.

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Téo Santana
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Written by Téo Santana

Archaeology pupil, RPGist, Hot Wheels collector, ficwriter & V系 enjoyer.

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